domingo, 21 de agosto de 2016

O Prometido

        A imagem na fotografia tinha todos os elementos de um conforto acalentador e ideais outrora sonhados: em primeiro plano, uma refeição, perfeitamente alinhada, como os pratos que eu gostava de preparar, tomates cereja cortados de comprido em quatro, duas fatias de pão, três pastas diferentes, cada uma de uma cor, pratos de porcelana branca com pequenas flores azuis, pintadas a mão; numa cadeira ao lado, um confortável sweter pendurado; em cima da mesa, um pouco atrás dos pratos em primeiro plano, um MacBook (Deus sabe o quanto eu desejei um MacBook no fim de 2014, tempos idos que acabou por mostrar que a necessidade na realidade, nem era tão necessária assim) com uma figurinha, dessas de álbum criança, colada no teclado; no centro da mesa, um aquário com flores; ao fundo, uma bicicleta... ah bicicleta, como eu sentia falta de ir com a minha bicicleta até a floresta e ficar ali um tempo, observando a lagoa e as montanhas ao fundo.
Aquela imagem vinha de algum lugar em Praga, uma casa, um apartamento, um flat, quiçá. Só sei que o fato de ser em Praga parecia ser mais um aviso sincrônico, uma mensagem do cosmos que mais uma vez eu apenas tentava decifrar. Icônico, pois, aquela foto me fez voltar a escrever depois de um bom tempo, não que eu não tenha escrito nada nesse meio tempo, aliás, escrevi e muito, páginas e mais páginas de produção intelectual, mas nada que viesse com alguma alma junto. Aquela foto despertara o meu ser novamente para a escrita. Ironicamente uma foto tirada em Praga, a cidade do Sr. Kundera, o senhor que me fez querer muito escrever muito, escrever de alma, escrever a alma, não só escrever, mas fazê-lo de um jeito grandioso, revelador, epifânico, profundo, intenso. Kundera me fez querer conhecer Praga, fugir às pressas de Paris e evitar franceses.
            Aquela foto (tirada em uma sala de Praga) que me retornara a escrita da alma, foi feita por um homem, homem este que chamarei de O Prometido, poderia ser O Guerreiro Prometido, afinal, a história toda conta de um Guerreiro, que além de prometido, era também guardião, mas para esse momento fiquemos só com o Prometido, pois é disso que esta parte da história se trata: da Promessa.
            Como olhar aquela foto e milhares de pensamentos não correrem pela mente de pés nus? Ele, que estava tão longe; ele que, como eu, ajeitava a comida no prato minuciosamente e as servia em louças provençais com florzinhas azuis; ele que tinha um sweter com ar de aconchego; ele que andava de bicicleta pelas ruas de Praga e que certamente percorria praças e cafés por onde o Sr. Kundera andou; ele que tinha um Macbook com adesivos infantis; ele que colocava ramalhetes de flores em vidros de aquário; ele era O Prometido.
            Lembro-me bem do dia em que soube, ou melhor, confirmei o já sabido. Em realidade foi numa noite, meio de madrugada, após um ritual de curas da memória da fala: a revelação. A maga sacerdotisa da cabeleira farta em caracóis, dourados como os campos de trigo, se pos diante do fogo e me olhando profundamente nos olhos, apontando seu fino dedo de feiticeira me disse: “Tu, Bruxa, tu és a mulher do Sapo” . Meu cachimbo de juremeira titubeou nos lábios, minha face se corou e o pensamento voou: “Como ela sabia dos interesses do Sapo por mim? E dos meus por ele? E das mensagens trocadas, dos sonhos sonhados? Sabia ela de tudo em sua clara visão oracular? E se não fosse, ainda que parecesse ser que fosse e ainda que ela tivesse visto e dito que seria assim?” A mente foi longe e o coração disparava de medo pela dúvida e de euforia pela confirmação. O Sapo encarnado homem era O Prometido da Bruxa.
            Por outro lado, de uma maneira que eu não sei explicar como, toda aquela situação me causava um desconforto, o desconforto que qualquer sentença peremptória tem sobre aquele que à recebe. Me sentia como uma jovem medieval, prometida pelo seu pai a um nobre estranho qualquer. Afinal, eu mal conhecia o Prometido (pelo menos não nesta vida). Estávamos trocando mensagens fazia pouco tempo e tudo que vinha dele, seja pelo mistério da distância, seja por sua magia xamânica me deixava absolutamente sensível. Ele era terra de incertezas, era a insegurança que pedia por confiança, era o medo que clamava por Amor, o enlamaçado pântano dos sapos que exige o mergulho nas sombras para o despertar na luz. E se eu... oh, eu deveria dizê-lo? O próprio fato de pensar na possibilidade já me deixava atemorizada... e se eu... E se eu me apaixona-se?
            Lembro-me do dia em que nos conhecemos, foi numa noite de magia... O fogo estava aceso e o círculo formado, os corações da tribo seriam lavado, eu guardava a porta Sul, porta das sagradas medicinas e dos animais de poder. Trabalhava no fogo quando senti uma presença muito familiar passando atrás de mim, me virei, assustei! Um par de olhos azuis, pacíficos, me miravam fixa e serenamente, sorriam. Eu sorri assustada e voltei-me imediatamente para o fogo: por que aqueles pensamentos passaram pela minha cabeça? Quem era aquele homem que provocara aquilo? Por que minha mente estava a julgá-lo incessantemente como se tivesse sido muito machucada por aquela pessoa, sendo que eu nunca o tinha visto? Projeções? Talvez... Mas os pensamentos não me abandonavam: Quantas mulheres ele teria? Quantas ele abandonara? Quais sofriam por ele? Me concentrava no fogo para servir, voltei-me ao trabalho, mas em um momento de distração a Força me encontrou e gritou em todo meu ser: “O Seu homem, é esse, bem atrás de ti”, com medo virei-me para ver quem era, claro que só podia ser ele, me assustei de novo e neguei, gritei com a Força: “Não, eu não quero!” Minha alma chorou, chorou de dor, como se previsse, ou recordasse desilusões! 
            Ele cantou no fogo, ícaro, voz alada... minha mente buscava toda forma de defeitos naquele homem, “ele é baixinho”, “atarracado, parece um sapo”, “por que canta na língua do colonizador-invasor-opressor?”, “aliás, que beleza mais estereotipada aos nórdicos-colonizadores-invasores-opressores tem esse homem”, “quantos filhos será que ele tem? Espalhados por quantos cantos?”, “terá ele mulher? Ou mulheres? Onde?”, “de quantas ele já despedaçou o coração com a sua cara bonita e o véu da voz doce de poemas e encantos?”, “este homem vai me fazer sofrer!”. Naveguei nos pensamentos, a velha feiticeira lavou o seu coração e na porta do meu ele bateu.
Ele me abraçou, eu senti... neguei de novo, afastei, demorei, temi!

Entre o bater, abrir e atravessar a porta tem um tempo... e nesse tempo em que esperamos imagino por quantos cantos de Praga aqueles olhos de promessa se perdem em devaneios, do alto de sua bicicleta azul?

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